Consultoria: o fim
Foram sete anos. Cada um deveria ter 365 dias, mas tiveram muitos mais. Começou em fevereiro de 2003, quando eu me demiti do meu emprego de analista de sistemas para virar trainee de uma então jovem e desconhecida empresa de consultoria.
Na época eu não sabia muito bem aonde estava indo. Sete anos depois, concluí que, de fato, eu não fazia absolutamente a menor idéia de onde eu estava me metendo e do quanto minha vida iria virar do avesso.
A primeira transformação foi a de que eu deixei de ter um emprego e passei a ter uma carreira - coisas completamente diferentes. Antes de me tornar consultor o emprego era só aquela coisa que você faz de 9 às 18 e que te paga uma grana pra você fazer o que realmente era interessante fazer da vida. Era como se trabalhar fosse uma espécie de "impeditivo" para viver. E aí logo nas minhas primeiras semanas de trainee meus superiores já perguntavam: "qual o seu objetivo profissional? qual a meta para sua carreira?".
Na época eu achei isto um exagero. Hoje acho muito, muito sábio, e pergunto isso para os meus trainees.
Além de mudar a forma com a qual eu encaro trabalho, mudou também - e completamente - a minha visão do mundo. Também pudera:
- Atuei em 18 projetos diferentes, num total de 1378 dias de consultoria.
- Visitei todas as regiões do Brasil e um outro país (Canadá), e trabalhei em catorze cidades diferentes em nove estados (contando o Distrito Federal). E se contar as cidades que passei de carro ou ônibus, ou fiz escala em voo, dá muito mais que isso.
- Viajei, a trabalho, nada menos do que 329 mil quilômetros, em 394 voos e 41 viagens de ônibus intermunicipais. Dava pra ter dado oito voltas ao mundo.
- Isto equivale a aproximadamente 783 horas (32 dias) dentro de um avião ou ônibus. Se contar também as horas de táxi ou o tempo mofando pra embarcar, aposto que daria uma volta ao mundo adicional...
- Conheci mais gente nestes últimos sete anos do que em todos os anteriores, somados. Se eu estimar, por baixo, 30 novos conhecidos por projeto, dá 510 pessoas novas na minha vida.
Eu tive todo tipo de experiência ao longo destes anos: vi carcaças de bois sendo cortadas ao meio com uma motosserra (é sério), máquinas de triturar carros inteiros, estúdios de programas de tevê, fábricas de armas (é, armas: pistolas, rifles, munição)... dormi em hotel cinco estrelas, em hotel de posto de gasolina de beira de estrada, em pensões vagabundas, até na guarita do vigilante de uma fábrica eu cheguei a pernoitar. Conheci gestores brilhantes, gestores picaretas, funcionários geniais, workaholics (inclusive no setor público, acredite), excêntricos, enrolados, e uma vasta variedade dos velhos e bons filhos da puta. Experimentei o calor úmido e inacreditável de Belém do Pará e o frio torturante do Canadá. Vi que o sudeste, o nordeste e o sul do Brasil são praticamente três países distintos dentro de um só. Comi caviar em restaurante de ministro em Brasília, comi PF de caminhoneiro na beira de uma estrada no meio do nada no Mato Grosso. E estar lá, vivenciar tudo isso, ah, isso muda tudo.
Mas tudo tem seu preço, e o mais caro deles é a distância.
Essa história da distância bateu mesmo no ano passado, numa noite em que já era tarde e eu estava concentrado, trabalhando no computador. E então eu estiquei as pernas por baixo da mesa, esbarrei em alguma coisa e instintivamente disse "opa, desculpe, Pavlov" - porque meu cachorro tem esse hábito de se acomodar debaixo da mesa. Só que não era meu cachorro, era uma toalha molhada. E aí eu me toquei que, não, aquela não era a minha mesa, era uma mesa de um hotel a milhares de quilômetros da minha casa. E aí veio tudo. Aí eu me toquei do quanto a falta de rotina já havia virado a minha rotina, do quanto eu já havia ressecado a garganta com ar seco de cabine de avião, do quanto ficava cada vez mais doído ver a cara desolada de Bethania na porta de casa enquanto eu arrasto a minha mala para dentro do elevador. Mais uma vez ficou clara a importância da pergunta que me fizeram quando eu era trainee: "qual a meta para sua carreira?". Porque na época eu estabeleci uma: "me tornar um consultor-sênior e liderar um projeto em cinco anos", e eu já havia liderado vários e, além de sênior, me tornei sócio da empresa. A meta, batida, já não servia para nada. Sem propósito, os dias passavam como que num borrão, sem rumo definido.
Eu precisava uma meta nova.
Não foi difícil definir qual seria. Eu queria viajar menos e me especializar, então a redação final ficou assim: "Conseguir um novo emprego, preferencialmente relacionado à projetos (minha especialidade), de TI (minha formaçã0), em São Paulo, até o final de 2010". O ano foi passando, novembro já ia terminando e, muitos currículos e entrevistas depois, achei que dessa vez não ia dar. Aí uma amiga de Bethania me liga, dizendo: "Tem uma vaga aqui com a sua cara".
Duas semanas depois a vaga era minha. Ganhei um cargo gerencial, autonomia, um bom salário... e, como tudo tem seu preço, ganhei também um abacaxi enorme pra resolver.
Confesso que eu não sei muito bem para onde estou indo. Mas se for como da última vez...
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Por sinal, eu devo à minha carreira de consultoria grande parte do conteúdo deste blog... muito da minha história (e apuros) está documentada aqui:
- Teve aquela vez que eu até desenhei o enrosco que foi a viagem de volta de um curso no interior de Santa Catarina, em pleno domingo.
- Tiveram altas histórias em "Windturn City" (pseudônimo dum "buraco" do interior de São Paulo onde trabalhei por 6 meses). Uma vez quase perdemos um voo porque meu trainee abraçou uma desconhecida no meio da rua. Teve também uma reunião surreal onde o dono da empresa saiu gritando que a empresa não tinha dono, ou aquela vez quando acordei com a cama cheia de formigas.
- Histórias de aeroporto? Ih, é o que mais tem: além das óbvias de atendimento horrível, tem as de atendimento exageradamente bom, de pilotos engraçadinhos, de pousos emocionantes, de aeroportos bizarros com ETs e Marcos Frota, de gente assustada porque eu deixei o iPod ligado no voo...
- Piadas à parte, os momentos sérios também estão documentados, como quando passei na banca examinadora (e fui efetivado no processo de trainee) e quando virei PMP.