Tudo começou em janeiro deste ano, quando um vídeo de um culto da Igreja da Cientologia vazou e foi postado no YouTube. No vídeo, o ator Tom Cruise (famoso adepto da religião) fazia uma palestra para outros membros ao som da trilha sonora do filme de "Missão Impossível". Os advogados da Cientologia, com ameaças de protesto, fizeram o vídeo ser retirado do ar.

Desde então a Cientologia virou alvo de protestos de um "grupo da internet" chamado Anonymous ("anônimo", em inglês).

O tal Anonymous começou fazendo ativismo online: fez alguns ataques aos sites da cientologia, distribuiu documentos sigilosos da seita pela internet, etc. Até que, no dia 10 de Fevereiro, cerca de 7600 manifestantes mascarados saíram às ruas de 109 cidades de todo o mundo e fizeram piquetes em frente a prédios da cientologia. Os protestos se repetiram neste último sábado e devem acontecer mais uma vez no dia 20 de abril.

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Mas o que é realmente fascinante sobre estes protestos é o conceito por trás do tal "Anonymous". Todas as definições que li na imprensa ("turma de arruaceiros online", "hackers turbinados", etc.) não fazem justiça ao que o Anonymous realmente é.

Para entender o grupo de verdade é preciso voltar às suas origens, nos porões da Internet, em fóruns obscuros, canais de bate-papo das antigas e, em especial, nas image boards - que são lugares barra-pesada MESMO, muitas vezes frequentados por pedófilos, racistas e outros maus elementos. Foi nestas image boards que passei o último mês, tentando entender mais sobre o Anonymous.

O porquê do nome foi a primeira surpresa...

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As image boards normalmente permitem (e estimulam) postagens anônimas. Cada post é "assinado" como anonymous, o que virou o nome de todo mundo e, ao mesmo tempo, de ninguém.

Além de não ter nomes, o Anonymous não tem hierarquia: A multidão que protestou em Atlanta no último sábado gritava para a polícia: "We have no leader!" (não temos líder), o que é a mais pura e impressionante verdade. A coordenação dos protestos aconteceu online e via ferramentas colaborativas (wikis, fóruns e salas de bate-papo), sempre por todo mundo e por ninguém em especial. Resumindo: não há lideranças no Anonymous.

Parece um contra-senso, mas o anonimato e a falta de hierarquia fortaleceu ainda mais o senso de comunidade: não se trata de indivíduos querendo criar reputações, e sim de idéias lançadas anonimamente e que, quando boas o suficiente, começam a ser reproduzidas por outros anônimos, o que resulta numa cultura própria totalmente criada de forma viral. Uma cultura simplesmente fantástica.

As máscaras, por exemplo, vieram direto dessa cultura.

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20080317_3Esta máscara é usada nas image boards pelo Epic Fail Guy (ou EFG), o personagem aí do lado, que sempre fracassa em longas e elaboradas piadas feitas colaborativamente. É um meme que saiu da internet e ganhou as ruas...

Note que entre as faixas de protesto há uma que diz que "o Longcat é loooooooooooooongo". Esta é referência a outro meme: o Longcat, o gato com corpo absurdamente longo.

A frase "Anonymous is legion - Anonymous does not forgive, anonymous does not forget" (o anônimo é legião - anônimo não perdoa, anônimo não esquece), usada meio que como slogan e estampada em vários cartazes, veio de outro elemento dessa cultura: as regras da internet, um conjunto bem-humorado de 48 diretrizes criadas a várias mãos. Algumas delas:

1) Não fale sobre o /b/
2) NÃO FALE sobre o /b/
3) Anonymous é legião
4) Anonymous não perdoa, anonymous não esquece
(...)
34) Existe pornografia de tudo. Sem exceção.

Eu deixei a regra 34 aí porque, vou te contar... os caras não estão brincando. Já viu pornografia dos Mythbusters? E do Calvin e Haroldo? Não queira, é traumatizante.

Eu podia ficar horas falando dos memes do Anonymous que apareceram nos protestos (são muitos, dizem até que os Lolcats surgiram lá) mas vou citar só mais um deles: Em Londres um dos manifestantes botou pra tocar "Never gonna give you up", o antigo sucesso de Rick Astley, para delírio da multidão. Aquilo era um "Rick roll" ao vivo: uma versão real da brincadeira virtual de enganar seus amigos pra fazê-los assistir ao videoclipe.

Esta imersão na cultura do Anonymous deixou bastante claro que os protestos não são exatamente um ato de rebeldia de "hackers politizados". Muitos manifestantes foram mais pela diversão ou pelo sentimento de grupo do que pelo protesto em si (este relato do protesto em Londres - de onde saíram as fotos deste post - deixa isso bem claro).

Quer seja ou não ativismo, o mais interessante de toda essa história é a demonstração de até onde é possível chegar com um modelo de atuação descentralizado e anônimo. Ainda mais num mundo como o nosso, cheio de regras, líderes, chefes e presidentes. Um mundo onde você não é ninguém se não for devidamente identificado e onde coisas como o direito autoral - o vínculo entre o autor e sua idéia - costuma ser mais importante que a idéia em si.

Essa história mostrou que, quando se retiram os nomes, os líderes e os autores da equação, o resultado nem sempre é uma anarquia. Sobram apenas idéias que, sem restrições, florescem por sua própria força, ganham dimensões às vezes absurdas e resultam em coisas como o Anonymous - esta mente coletiva descentralizada que se tornou grande o suficiente para extrapolar a internet e ganhar as ruas de várias partes do mundo.

Ao contrário do que normalmente acontece, o virtual, pela primeira vez, se tornou real. O dia dos protestos marcou, sem dúvida nenhuma, um momento histórico: o dia em que a internet criou vida e saiu às ruas.

P.s.: Este post foi escrito especialmente para o dia da "Blogagem inédita", promovido pelo Interney como estímulo para que a blogosfera produza mais conteúdo relevante e inédito. Eu sou absurdamente a favor desta causa e simplesmente não podia deixar de participar. Espero que tenham gostado...