1 de Novembro de 2013

Faltavam alguns minutos pra reunião com o chefe - o dono da agência. Era tempo suficiente pra imprimir a planilha com o modelo de controle de horas do time. Desde que comecei a trabalhar como diretor de projetos em agências de publicidade sempre me incomodou a falta de controle sobre esse tipo de custo. Era um problema simples de resolver.

Entrei na sala do chefe, coloquei o papel em cima da mesa e, antes que eu pudesse começar a falar, ele foi direto ao assunto:

“Então, Tinoco, nós estamos te demitindo.”

É impossível descrever o que acontece na sua mente depois de ouvir essa frase. O raciocínio lógico vai direto pro buraco que se abre no seu estômago, e você fica lá, paralisado. A única memória que fica é a do trauma. Ele continuou falando, mas eu só olhava pro meu papel com o controle de horas e pensava no tempo que perdi naquilo. Pensei também que agora fazia sentido o comportamento frio dos outros diretores da agência comigo na última semana - todo mundo já devia saber. Aí me lembrei que era sexta-feira, e fiquei pensando na recomendação do meu antigo RH de que você nunca faz demissões na sexta-feira, pra pessoa poder usar outros dias úteis da semana pra buscar ajuda.

O chefe concluiu dizendo alguma coisa sobre eu ir procurar terapia, o que eu achei incrivelmente ofensivo. E aí ele se levantou e me deu um abraço, que eu, incapaz de raciocinar, aceitei. Me arrependo disso até hoje.

Voltei pra minha mesa e, catatônico, peguei minhas coisas e saí. A agência ficava a alguns quarteirões da Paulista, então andei até o MASP e me sentei no parque do lado oposto da avenida. Eu olhava as centenas de pessoas ao meu redor e só conseguia pensar que todas elas tinham um trabalho - exceto eu. Todas elas tinham um lugar pra ir ou algo pra fazer, e eu era o sem-propósito, sentado no parque em dia de semana, sem ter pra onde ir. Completamente sozinho no meu fracasso. Foi o sentimento mais desolador que tive até hoje.

Comecei a andar de volta pra casa e acabei fazendo o trajeto inteiro a pé - uma caminhada de quase 3 horas, com a cabeça vazia e cheia, e com o coração entre o abandono e a desesperança. Enquanto passava por um dos viadutos da Av. Santo Amaro, tirei a foto abaixo, e postei no Instagram com a legenda: “pra onde ir agora?”

Rua com a pintura de "devagar" no asfalto, mas sem as duas primeiras letras


4 de Março de 2025

Eu e Bethania descemos do trem na Union Station, como sempre - mas ao invés da preguiça matinal usual, estávamos ambos incrivelmente tensos. Descemos até o saguão do desembarque. Um beijo rápido, um olhar sério, um “boa sorte” austero, e ela vai pra saída norte e eu pra saída sul - trabalhamos em prédios diferentes, mas no mesmo banco, e naquele dia com a mesma missão amarga: mandar gente embora.

Mesmo com pandemia (e um mandato inteiro de um certo presidente, laranja, burro e fascista, no sul da fronteira) - tivemos uma longa bonança no trabalho que, como tudo que é bom, havia chegado ao fim. Era hora da infame “reestruturação”. Bethania trabalha no RH, então o trabalho dela era apoiar um monte de executivos na execução das demissões. Ela fez quase tudo: os pacotes, os novos organogramas e, naquele dia, as fatídicas reuniões. Já eu tive mais sorte: meu chefe é quem iria chamar os escolhidos pra bater um papo na salinha.

Desci até o saguão do prédio pra pegar um café. Enquanto espero na fila, vejo passar a diretora de tecnologia e, com ela, a Suzanne, líder de um dos times de desenvolvimento. Mas elas iam andando em direção à saída. A diretora de vestido e salto alto, e só com o crachá na mão. Suzanne estava de jaqueta, touca e mochila. Ela me viu e, num leve aceno de cabeça, confirmou o que eu suspeitava.

De volta ao terceiro andar, era bem óbvio que todo mundo já sabia o que estava acontecendo. Os sorrisos sumiram. Todo mundo passava pelo corredor se entreolhando. Foi, de longe, a manhã mais pesada desde que comecei a trabalhar no banco.

Meu chefe manda uma mensagem pra mim e pro outro diretor com gente pra demitir, relembrando os horários das reuniões pras demissões do nosso time. “Eu vou falar com eles e, de lá, eles devem ir direto pro elevador. Preciso que vocês passem na mesa deles pra pegar as coisas deles e trazer pra cá”. Pra evitar encontrar com as pessoas, a gente combinou um local próximo da salinha pra deixar os pertences de cada um.

Um dos meus programadores - vou chamá-lo de Madureira - era o primeiro da lista. Com dois anos de banco, ele era tão ruim de serviço que ficou sem bônus de performance por dois anos seguidos. Eu botei ele no PRP (“Plano de Recuperação de Performance”), envolvi o RH, dei carta de advertência, fiz absolutamente tudo que poderia ter feito, e nada. É bem provável que ele tenha um segundo emprego e estava só enrolando no nosso. De todos os ângulos era uma demissão correta, mas a única coisa que eu conseguia pensar era no filho dele, que nasceu ano passado. Ainda tenho a foto dele no meu telefone.

“Madureira chegou aqui”, disse meu chefe. Fui até a mesa dele. Peguei a jaqueta, guardei as coisas da mesa na mochila. O café da caneca dele ainda estava quente. Me lembrei de novo do filho dele.


Depois da longa caminhada pela Santo Amaro, repensei (e reconstruí) toda a minha carreira fazendo de tudo pra nunca mais passar por isso de novo. Nessa, eu acertei. No meio das mudanças, fiz o meu filme politicamente, e levei uma relocação de cargo lateral, com mais destaque. Meu trabalho ficou ainda melhor.

Na época da minha demissão, eu pensava muito em como seria bom ter estabilidade durante cortes de pessoal. Nessa, eu errei. A gente se sente horrível do mesmo jeito.