Uma vez me mostraram o Worldometers, um site com contadores para vários indicadores mundiais que vão atualizando "ao vivo". É bem legal ver a população mundial - ou a quantidade de celulares vendidos este ano - crescendo na sua tela em tempo real.

No entanto, um contador que sempre me chama a atenção é o de pessoas mortas. Eu olho para o número e lá estão trinta e um milhões, seiscentas e oitenta e oito mil e noventa e cinco pessoas mortas este ano. Se fosse só um número grandão e imóvel ele pareceria distante, como uma estatística, mas ver o número crescendo na sua frente o torna terrivelmente real. Tanto que, um instante depois, o contador pula para noventa e seis. E noventa e sete. Noventa e oito.

Aí eu olho em volta e me vejo no computador, trabalhando no meio de uma tarde qualquer. Dois colegas passam conversando no corredor. O contador pula para noventa e nove. No cubículo ao lado do meu, outro colega digita e clica, digita e clica. Agora são cem pessoas mortas. Ele digita mais um pouco. Cento e uma.

E então eu vejo o tamanho do abismo de indiferença que existe entre o horror da morte e o milagre da vida.


Era fim de sexta e, enquanto Bethania ainda estava no trabalho, eu estava é na correria de chegar em casa e dar comida pros bichos, porque a gente ia se encontrar com uns amigos e eu precisava pegar o carro de volta pra Toronto mas não sabia o horário que ela tinha combinado, então entre o pote de ração e a lata de patê eu peguei o celular e não entendi por que tinha uma mensagem de Bethania dizendo: "não precisa vir". Então liguei pra ela:

"Não precisa? Por quê?"
"Me ligaram do Brasil. Meu pai acabou de falecer."
Breve pausa.
"Pega um táxi então e vem pra casa. Enquanto isso vou começar sua mala e vou olhando o voo de onze e meia da noite pra você".

As próximas horas foram uma corrida maluca. A passagem de avião foi comprada no meio da estrada pro aeroporto, e Bethania só embarcou graças à generosa política que a Air Canada tem para emitir passagens quando morre gente na família.

Depois de deixar a Bê no aeroporto, eu voltei para o carro e, no instante em que saí do estacionamento, dei de cara o mais incrível pôr-do-sol de verão. Um céu inacreditavelmente alaranjado reluzindo sobre a estrada. Nuvens cobrindo o horizonte em tons de cinza dignos de uma pintura de Monet.

E então me lembrei do site com os contadores, indiferente ao céu espetacular, indiferente à Bê entrando no avião para enterrar o pai. Para o contador, era simplesmente mais um - mas para nós, esse "mais um" era muito.


No sábado seguinte, passei o dia em "modo faxina": limpei a casa inteira, cada cantinho. Lavei a roupa, troquei os lençóis. Lavei toda a louça e deixei a cozinha limpinha. A cozinha toda limpa, por sinal, é o meu "pôr do sol particular": adoro ficar olhando pra ela, já que dura apenas alguns minutos... Por fim, comprei flores pra levar pra Bê no domingo de madrugada, pra entregar no aeroporto quando o voo dela chegar.

Depois de um belo cochilo (prioridades), fiquei na cama ouvindo ela contar dos detalhes da viagem. Da canseira que é tentar resolver qualquer coisa no meio da burocracia brasileira. De como o pessoal que ia receber os móveis doados da casa do pai dela cancelaram o carreto em cima da hora, entre outros detalhes nada divertidos da semana. No final, depois dos desabafos, ela disse que trouxe uma surpresa pra mim. Na hora achei que era, sei lá, goiabada cascão ou paçoquinha...

Eram dois testes de gravidez. Ambos positivos.


No site dos contadores tem também um com o número de nascimentos. Só este ano já nasceram oitenta milhões, novecentas e trinta e três mil, seiscentas e sessenta e sete pessoas. Setenta e oito. Setenta e nove...

No começo do ano que vem, o contador vai contar mais um. Para o contador, será só mais um. Para nós, esse "mais um" será a coisa mais importante das nossas vidas.