Pausa nas sagas sofridas do meu estágio canadense (spoiler: tá um saco) pra contar uma coisa muito, muito boa: o show do Godspeed You! Black Emperor de sábado passado.

Preâmbulo: show de quem?

"Saco, lá vem ele falar dessas músicas esquisitas", você está aí pensando que eu sei. Então eis aqui uma pergunta: você é apaixonado por alguma coisa? Pelo Galão Doido da Massa? Pelo seu carro? Pela sua mulher? Por um livro que putaquepariu cara esse livro explica a VIDA, mano? Claro que é. Tem alguma coisa aí que tu curte pra caralho. A minha é música, particularmente a música que sai do lugar comum e explora um lado inédito, mesmo que esquisito, dessa coisa maluca que é descrever coisas indescritíveis empilhando frequências sonoras.

O Godspeed You! Black Emperor faz isso, e faz usando um som absolutamente colossal, uma massa enorme de fúria composta por três guitarras, dois baixos, duas baterias e uma mocinha tocando violino no meio de tudo. Os guitarristas tocam sentados porque precisam usar os dois pés pra operar suas pedaleiras - e com isso eles conseguem conjurar um som único, uma espécie de leviatã guitarrístico sobrenatural. "Storm", a faixa que abre o álbum "Lift your skinny fists like antennas to heaven" é uma das músicas mais bonitas que já ouvi.

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Nenhuma banda no mundo soa como eles. Eu descobri a banda em 2005, e pra variar dei azar: eles estavam numa espécie de hiato, sem fazer shows ou lançar música nova. O hiato só acabou em 2012, quando veio do nada um (premiado) álbum novo. E esse ano eles não somente lançaram outro álbum como também botaram o pé na estrada pra tocar. E um detalhe muitíssimo importante: eles são canadenses.

Aí esse ano eu tinha tudo pra dar sorte: morando no Canadá, com a banda ressuscitada e fazendo turnê. Mas, como de costume, não alimentei expectativa nenhuma. Até que em julho, o Songkick - um site que te manda alertas de shows das bandas que você curte - mandou o email que eu esperava há décadas.

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O show

É claro que precisamente às dezenove horas eu já estava dentro do Danforth Music Hall, bebericando minha cerveja de R$ 301 e morrendo de expectativa.

Duas horas de espera depois, começa o ritual: sem anúncio nem nada, os caras vão entrando, um a um, pegam os instrumentos e começam a fazer o que aparentemente convencionou-se chamar de "hope drone". Sabe quando a orquestra tá afinando os instrumentos e eles sempre tocam aquela mesma coisa no começo do espetáculo? "Hope drone" é todo mundo da banda esmerilhando os instrumentos e criando uma massa elétrica de ruído absolutamente delicioso por alguns minutos, enquanto quatro projetores Super8 passam rolos de filme semidestruído atrás do palco onde é possível ler apenas uma palavra: "hope".

Um comentário sobre o ruído: antes do show começar, eu comecei a olhar em volta e todas as pessoas ao meu redor estavam usando protetores auriculares. Honestamente, nem precisou: o show foi muito alto, mas nada fora do comum. E fica aqui o meu abraço pro engenheiro de som, que acertou magistralmente a mão. Há tempos eu não ia num show com acústica tão boa (e não tem nada mais irritante do que ver músicos brilhantes serem assassinados por uma acústica ruim). Eu me lembro de um momento onde os guitarristas tocavam com chaves de fenda, o baixista usava um arco de violoncelo em um dos pratos da bateria, os bateristas esmigalhavam os bumbos, uma bola de dissonância ensurdecedora, mas dava pra ouvir tudo. Aí a banda parava inteira e o guitarrista solo começava um dedilhado baixinho, e o silêncio era tão perfeito que dava pra ouvir a bartender, no fundo do teatro, colocando uma moeda na jarra das gorjetas. Foi mágico. Em termos de som, nesse sábado deu tudo certinho.

De fato, tudo deu certo nesse show. A começar pela primeira música: para surpresa minha e de todos, Storm. Total "gentileza canadense" da banda. Um cara na plateia ainda gritou: "Thank you!!!!!" e todo mundo caiu na risada. E caras... Storm ao vivo. Eu podia morrer ali naquela hora, cabou, a minha existência estava completa, tudo soou alto e lindo e épico exatamente como eu sempre imaginei que soaria. A sequência das músicas do show também foi perfeita, porque eu mal me recuperava de Storm e eles entram com "Peasantry", a primeira música do último disco, onde o leviatã das guitarras diz o riff mais "agora a porra ficou séria" de toda a história da banda. E teve música nova (!!!), e depois música velha, e no meio do show eles param tudo e o Moya (o guitarrista) entra com "Moya" (a música), que é praticamente o hino não-oficial do Canadá. Foi de chorar. Gritaram "thank you" da plateia de novo e tudo.

Até o final do show foi perfeito. Lá pelas duas horas de barulheira, do mesmo jeito que entraram no palco, sem alarde, os caras começam a abandonar os instrumentos, um a um. A plateia fica lá, estática, enquanto por algum motivo o palco ainda está elétrico, fazendo barulho sozinho. Então um dos bateristas volta e, solenemente, começa a desligar os amplificadores2, um por um. Não teve bis, ninguém pediu, não precisava.

(1) CAD$ 9, mais $1 de gorjeta, mais dólar canadense a R$ 3,00...
(2) Um deles tinha, bastante apropriadamente, uma bandeira canadense de ponta-cabeça.