Músicas que merecem um post: "A Real Woman", Squarepusher
Primeiro, contexto. Você precisa saber de quem estou falando, se é que ainda não sabe. Segundo o olhar penetrante de Jimmy Wales:
Squarepusher é o pseudônimo de Tom Jenkinson, um músico inglês contratado pela Warp Records. Ele é especializado nos gêneros de música eletrônica chamados drum and bass e acid, com influências significativas de jazz e musique concrète.
É importante você saber também que Tom Jenkinson não é apenas um "produtor" que sabe operar um laptop e alguma parafernália eletrônica: ele é um baixista. Isto é importante para entender por que "A Real Woman", a quarta faixa do disco "Just a Souvenir" (de 2008), é tão genial que, sozinha, mereceu este post enorme.
Agora você já pode clicar no "play" aí embaixo e continuar lendo.
"A Real Woman" já garante uma "simpatia" inicial ao partir de uma combinação simples mas extremamente eficiente de punk rock, Kraftwerk e jungle/drum and bass. Mesmo que seja pra ouvir só en passant, sem prestar muita atenção, enquanto lê/come/vê TV/etc., a música já funciona bem pela facilidade com a qual os três elementos se misturam. As qualidades de cada um deles - o repique do drum and bass, o vigor do punk e a voz "vocoderzada" do Kraftwerk - foram cuidadosamente orquestradas para se misturar sem disputar espaço, complementando uma à outra.
Daí você pega os fones de ouvido e escuta "A Real Woman" de novo, desta vez prestando bastante atenção nos detalhes. E aí ela vai ficando cada vez mais genial.
Comecemos pela mixagem: a faixa abre só com a bateria, que soa fabulosamente bem, a ponto de eu não conseguir distinguir se ela é eletronicamente programada ou não. Artistas do drum and bass tomam um cuidado todo especial com a bateria (porque, oras, ela é 50% do drum and bass), e em especial com o snare drum (a "caixa"). Ela, assim como o bumbo, é repetida à exaustão e é quem sustenta todo o som da bateria - o bumbo marcando o tempo e a caixa, no contratempo. Sabendo que a combinação bumbo-caixa é a "alma" de uma boa música, Squarepusher obteve, sei lá como, o som mais lindo de snare drum que eu já ouvi em toda a minha vivência musical e botou nesta faixa. Na mixagem eu quase consigo enxergar (sim, com os olhos, sinestesia FTW) a pele do tambor vibrando, tamanha a precisão e clareza sonora. Repare também que nenhum outro tambor é usado na música - simplesmente porque não precisa. Todos os fills são feitos só com os pratos, o bumbo e variações do repique da caixa - todos inacreditáveis.
E então a música abre e segue sua levada punk. Uma das notoriedades do punk rock é sua "pobreza harmônica". Mas sem ofensa; refiro-me ao fato de que o punk rock é baseado na "simplicidade com intensidade": letras fáceis, guitarra tocada de forma básica e - aqui vem o principal - uma harmonia muito, muito simples. Quatro acordes, no máximo. Nada de firulas como "Sol com quinta aumentada" ou "Fá diminuto" - é tudo simplão, toscão, são todos acordes que qualquer um aprenderia a tocar só de ler numa revistinha, daquelas de banca, com músicas cifradas da Legião Urbana (hehe) e tal. Só que Squarepusher é conhecido pelas suas influências de jazz - e jazz está no extremo oposto da simplicidade harmônica do punk. Além do mais, ele é um baixista, e baixistas, como fazem uma espécie de "base harmônica" no som de uma banda, tendem a entender muito bem de harmonia e não se intimidar para fazer modulações, usar dissonâncias e fazer transições bem pouco intuitivas ao longo de uma música. Só que em "A Real Woman" Squarepusher se propôs a fazer um punk rock. E é aí que reside outro aspecto da genialidade da música: ele usa a simplicidade do punk como elemento de contraste, intercalando, em três momentos no meio da música, uma longa frase de baixo, complexa, dissonante e em tercinas - que, por ser o oposto de todo o resto da música, a completa como obra de arte.
Tá, essa foi difícil de entender, eu admito. Mas vamos por partes: primeiramente, estou falando de uma frase musical, ou seja, não é nada que ele canta, e sim uma sequência rápida de notas que ele toca no baixo. Esta frase aparece pela primeira vez aos 0:41 segundos e termina aos 0:51. Ouviu? Agora repare que a estrutura da música é assim:
- Introdução e o primeiro verso
- A frase maluca do baixo (aos 0:41, durando 10 segundos), que quebra a sequência simples que a música tinha até então, circula por uma série de tons malucos, mas termina no mesmo tom do primeiro verso (lá bemol).
- Um segundo verso, musicalmente igual ao primeiro mas com a letra diferente.
- A frase maluca de novo, aos 1:26 segundos - mas repare que desta vez ela está quatro segundos mais longa (vai até 1:40), e não termina no mesmo tom do verso anterior, e sim uma quinta menor abaixo (em mi), o que permite introduzir...
- ...um verso todo novo, um pouco mais, digamos, "agressivo", que começa a quebrar a sequência punk-rockeira simples e até termina dissonante (aos 1:57), como que para dar a entender que há algo muito mais complexo querendo sair de dentro da faixa.
- Aí vem um terceiro verso, também musicalmente igual ao primeiro, mas com pequenas variações na letra e nos fills da caixa da bateria. E aí a música caminha para o fim...
- ...aos 2:46, quando a frase maluca de baixo volta e é tocada inteira, fechando a música.
A beleza desta frase de baixo (que, após algumas audições, vai ficando mais amistosa e fácil de entender) é que ela é o que "costura" os versos da música: se você deixa de lado os 4 segundos finais dela, você "desce" da sequência de notas em lá bemol e pode engatar os versos-base. Se você toca ela inteira, vai "descer" dela numa quinta menor, e aí pode tocar o verso diferente ou finalizar a música. É como se a sequência de notas fosse o DNA da faixa.
A discografia de Squarepusher é bastante rica. Além do "Just a Souvenir", valem uma audição o "Hard Normal Daddy" (de 1997, um clássico) e o "Go Plastic". O "Big Loada" tem o clipe mais divertido da história (o de "Come on my selector", imperdível), mas o disco é meio mais ou menos.