(sem título)
“Apenas alguns instantes”, ele pensava. “Resistir por apenas mais alguns instantes”. Mas no fundo o que ele queria era que aquilo durasse para sempre, para que ele continuasse exatamente como estava – fascinado pela beleza daquela mulher, a mulher da sua vida, a mulher que estava de pé à sua frente, a centímetros de distância. Nunca tão próxima.
Anos atrás, ainda muito jovem, ela ia descendo as escadarias daquele mesmo lugar aonde estavam, junto com as tias, para ir pra casa. Ela o viu e sorriu, simpática, sem perceber que com isso escrevia permanentemente na alma daquele homem. Escrevia os termos do conflito que lentamente foi se instaurando, o conflito onde ele tentava, em vão, se convencer de que aquilo que sentia era bobagem, era indevido, até pueril; ou, algum tempo depois, de se convencer de que aquilo era terrível, era uma tentação da qual ele deveria se desvencilhar a qualquer custo. Os anos de esforço foram inúteis: ela estava ali, de vestido branco, e ele só pensava nas formas escondidas debaixo da cor imaculada e em como nunca em toda sua vida havia desejado tanto alguma coisa quanto o corpo dentro daquele vestido – e esse pensamento era quase grande demais para disfarçar, mas ainda assim ele (a duríssimas penas) disfarçava para não estragar aquele momento, o momento mais importante da vida dela.
Aquele lugar, o mesmo aonde se conheceram, o local aonde tudo começou – aquele seria o mesmo local onde tudo seria concluído. Concluído em apenas alguns instantes.
E ela ali, com seus olhos negros marejados e fixos nos seus, atenta a cada um dos seus mínimos movimentos. Nunca ela havia olhado para ele com tamanha intensidade. E foi com intensidade que ele passou os anos dedicado ao seu trabalho, à sua missão, tentando esquecê-la e ganhar a guerra contra si mesmo. Mas ninguém vence uma guerra que não quer vencer, e por isso os grandes, os infinitos olhos dela lhe tiravam as últimas forças com facilidade. Mas ele resistia, era preciso resistir por mais alguns instantes - e ainda restava fazer os votos e trocar as alianças.
E era preciso manter a compostura, pois quem estava na igreja e não olhava a noiva estava, com certeza, olhando pra ele. A hora dos votos foi a hora mais difícil: ao dizer o “amando-te e respeitando-te” ela, com a voz trêmula, deixou correr uma lágrima. Ao vê-la tão feliz, tão frágil, foi por um triz que ele não abandonou a compostura e a conteve num abraço e confessou, sussurrando, tudo o que sentiu e não lhe disse por todos aqueles anos. Feito tão difícil quanto conter as palavras no dia em que ela, também emocionada, lhe revelou que o queria naquele altar. Mas, assim como outrora, também se calou. E o instante final desses anos seguiu, escorrendo entre seus dedos, até se esgotar.
A cerimônia chegou ao fim. A “Ave Maria” começou a tocar e ela, a mulher da sua vida, lhe deu as costas e começou a sair da igreja. Para viajar com o marido em lua-de-mel, depois ir morar na capital e, depois, nunca mais voltar. Discretamente, ele debruçou-se sobre o altar, segurando trêmulo as beiradas do mármore branco enquanto assistia os passos do casal que se afastava, eternamente unido, em uma só carne. Pensou que se sentiria aliviado por ter resistido à maior provação de sua vida – mas só pensava no quanto era um fracassado. Sua devoção à Deus não chegava nem perto do que ele sentiu por aquela mulher. Pois só um amor grande desses lhe faria entregá-la, ele mesmo, a outro homem em sagrados laços matrimoniais.
A batina lhe pesaria severamente nos ombros daquele momento em diante. A comunidade paroquial não perceberá o vazio no peito do padre, mas o padre jamais deixará de notar o vazio que ela deixou, no banco da igreja e em sua memória.
(É que no sábado passado eu fui padrinho de um casamento e a historinha acima – fictícia, obviamente – me ocorreu enquanto o padre celebrava a coisa toda).
(Em tempo: Sabe qual foi a música que tocou quando eu e os outros padrinhos entraram? “Nothing Else Matters”, do Metallica).
(Sim, amigos. Metallica. Numa igreja católica. Mandou bem demais, Gabriel.)