Nas últimas décadas produziu-se muita música eletrônica. Muita MESMO, especialmente a de variedade “dançante”. A esmagadora maioria deste universo foi feita, infelizmente, com o único objetivo de ganhar dinheiro e encher os sets de DJs de qualidade duvidosa por aí – o que resultou na dance music sendo taxada de boba e/ou comercial.

Mas se existe alguém que realmente entendeu a dance music e lhe tratou com o devido respeito, esse alguém é o Basement Jaxx. Suas produções podem até usar os mesmos modelos e estética do dance-farofa-de-rádio-FM, mas são feitos de forma TÃO superior que suas músicas são verdadeiramente geniais. É como se eles fossem o Cirque du Soleil da coisa.

Outro dia estava ouvindo pela primeira vez o “Scars”, seu quinto e mais recente disco, quando esbarrei com “Twerk”, aquela que talvez seja a obra-prima do Basement Jaxx – e talvez de toda a dance music da última década.

Mas estamos num universo taxado de bobo e comercial, então a genialidade de “Twerk” tem que ser melhor explicada para separarmos o joio do trigo. Por isso dê um clique no “play” do vídeo abaixo e continue lendo.

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Twerp tem dois começos. A primeira é uma linha de synths, densa, única e tão boa que daria pra montar uma outra música inteira em cima dela – mas que acaba e não reaparece em mais nenhum momento da faixa. Isso são os produtores esfregando na sua cara o quanto eles são fodas: “sim, eu vou jogar fora isso aqui e levar a música pra um outro lado AINDA melhor”, dizem eles. E aí vem o começo de verdade da música: a introdução da batida e o baixo – e apenas deles. O Basement Jaxx sabe que 90% de uma boa música dançante está contido nestes dois elementos – e, de fato, mal se passaram 20 segundos de música e ela já está ESCORRENDO groove e dizendo a que veio: veio para fazer você mexer a sua bunda. Mesmo porque “twerk” significa exatamente isto, segundo o Urban Dictionary:

Twerk: Trabalhar o corpo através da dança, em especial a parte traseira.

E os vocais de Yo Majesty entram para completar a bomba sonora, cantando sobre… sobre absolutamente nada. E é EXATAMENTE isso que o vocal de uma música dançante deve fazer: não é hora de contar histórias, é hora de mexer a bunda. A função dos vocais é puramente estética; servem para, ao mesmo tempo, emprestar um toque humano ao monte de sons sintéticos e – nas mãos de bons produtores como o Basement Jaxx – funcionarem como um segundo instrumento percussivo. Reparem bem como as sílabas e a fonética que Yo Majesty usa soam muito mais como batidas do que como palavras, especialmente no refrão (que parece música indiana mas que eu acho que é em inglês):

Get bangin’ on
Get down, get here, show me l[ow me l]ove

Mas são os inúmeros detalhes sonoros e o esmero na produção que elevam “Twerk” de uma simples faixa 9 ao status de obra prima. Se você ouve sem prestar atenção acha que a faixa é apenas batida, baixo e vocais. Mas repare que tem no mínimo umas TRINTA coisas tocando ao mesmo tempo, e TODAS concordam entre si e somam para o conjunto ficar completo e rico, ao invés de confuso. Quem entende alguma coisa sobre produção musical ou já teve uma banda de garagem e sofreu pra fazer guitarra, baixo e bateria não soarem embolados sabe o quanto isto é difícil de conseguir.

E o mais legal é que estes detalhes contém um monte de referências, algumas mais técnicas – como o trechinho de TB-303 que toca lá pelo 1m15s –, outras mais óbvias, como o finalzinho dos versos onde Yo Majesty canta:

She’s a maniac, maaaniac, on the dance floor (she’s on the dance floor!)
She’s dancing like she’s never danced before

Notou alguma coisa familiar? Sim, porque estes versos são emprestados da trilha sonora do filme Flashdance (relembre clicando aqui). Além da referência estar dentro do contexto da música (menina doidinha “trabalhando o corpo” na pista de dança), ainda tem o detalhe que Yo Majesty “canta” através do manjado efeito de auto-tune (aquele, lembra?) - assim, usando o que há de mais moderno na música dançante de hoje para reverenciar a música dançante de ontem.

E ainda sobram mais inúmeros detalhes pra mencionar: a maestria na dinâmica de construir/resolver tensão tonal entre os versos, o high end do espectro sonoro – que é diferente em todos os versos, o toque do phazer nos versos do finalzinho da faixa (“get crazy, get sick / i see you working it”) que deixa o vocal minuciosamente crazy e sick... Dava pra escrever uma tese de mestrado em cima dessa música, mas vou parar por aqui.