Sim, foram dois bons dias. Ontem e hoje.

Fiquei em São Paulo para dar um treinamento de Gerenciamento de Projetos para uma turma de umas 20 pessoas. O cliente era uma empresa de telefonia.

Um dos meus indicadores se a turma vai ser boa ou não é o tempo entre começar o treinamento e alguém perguntar a que horas vai acabar ou pedir pra sair mais cedo. Dessa vez o pedido veio na PRIMEIRA hora de treinamento: um dos alunos - um loiro de olhos azuis com pinta de vendedor - vinha dizendo que tinha uma reunião. O treinamento estava agendado há mais de UM MÊS, antecedência suficiente para se evitar que qualquer reunião coincida com os dois dias de treinamento. Mas segui meu procedimento padrão nestes casos: sorrir e dizer que sim.

Aí a manhã de treinamento segue e, durante um coffee break, vejo um grupinho conversando. O assunto era a portabilidade numérica e o que a empresa estava fazendo para se adequar às normas da Anatel. Não vou entrar em detalhes, mas digo a vocês que eu teria MUITO MEDO de usar a portabilidade numérica. Deixa passar aí uns seis meses que é melhor.

No fim do coffee-break, outro consultor que estava me ajudando no treinamento pergunta:

- Ei, você viu que um dos alunos saiu logo no começo e não voltou?

Passei os olhos na turma e pensei por um minuto.

- Era aquele alto, japonês, sentado no fundo da sala?
- Ele mesmo.

Saídas à francesa eram coisa inédita no meu histórico de treinamento. Uma pena.

Quase no fim da manhã um dos alunos - um que era meio careca - vem me procurar e pergunta se pode conseguir uma cópia dos slides do treinamento. "Tem tudo impresso junto com o material que vocês receberam", eu disse. Mas ele queria uma cópia do arquivo do PowerPoint com os slides - o que seria um equivalente digital à "mamar na teta da bovina". Neste caso eu não poderia sorrir e dizer que sim, então mencionei que os slides tem copyright (o que é verdade) e que o pessoal é bem restrito quanto à disseminação dessas coisas (também verdade).

Mais tarde almoçamos, eu e os alunos. Conversando sobre o tanto que eu viajo, comentei que moro em São Paulo há quase um ano e meio e que aquele era meu terceiro dia útil de trabalho em São Paulo. Todo mundo fez cara de pena.

Antes de reiniciar os trabalhos da tarde o japonês meio alto reaparece de repente. "Cara, me ligaram do trabalho, tive que voltar de repente. Perdi muita coisa?", ele disse. Segui meu procedimento padrão: sorri e disse "tudo bem".

E o curso continua, até que, lá pelas TRÊS da tarde, uma aluna nova chega de repente. "Tou reformando a minha casa e a faxineira avisou que não veio e eu tive que ficar pra olhar pedreiro". Eu já ia seguindo meu procedimento padrão de sorrir e dizer que sim quando notei que ela carregava um panetone na bolsa. Aí fui ser simpático:

- Trouxe um lanchinho aí?
- Não, na verdade eu trouxe pra você, pra gente comer no coffee break.

E me entregou o diabo do panetone. A mulher me chega seis horas atrasada e me traz um PANETONE. Vou trabalhar cinquenta anos nessa profissão e não vou ver de tudo.

Aí deu 18 horas e eu encerrei as atividades do dia. Enquanto arrumávamos a sala, meu colega consultor veio comentando:

- Cara, descobri que um dos alunos não é da empresa.
- Como assim? - perguntei.
- Na verdade ele é contratado de uma consultoria terceirizada. Uma consultoria de gerenciamento de projetos. O cara ainda ficou me pedindo cópias do material do treinamento, mas eu percebi a tempo e não passei nada pra ele.
- Peraí. Era um cara meio careca?
- Ele mesmo!

Como dizia uma sábia colega consultora, "é golpe em cima de golpe".

Saímos da empresa e, como era meu dia de rodízio, liguei para a Coopertáxi para conseguir condução para casa. Só que enquanto eu esperava que eles retornassem a ligação acabei vendo outro táxi passando vazio na rua e dei sinal. Entramos eu e meu colega consultor, que perguntou:

- E o outro táxi, o que você chamou pelo telefone?
- Vou ligar pra lá pra cancelar.

O taxista deu um pulo e exclamou:

- Eu roubei corrida de cooperativa?? De qual foi??
- Err.. foi da Coopertáxi - respondi.

E aí o taxista perdeu a compostura e deu UMA GARGALHADA e continuou comemorando o ocorrido como se fosse final de copa do mundo, com soquinhos no ar e tudo. E gritava - sim, GRITAVA - repetidas vezes:

- CHUUUUPA COOPERTÁXI!!!

E eu e meu colega consultor olhando um para o outro no banco de trás, sem entender nada. Algum tempo depois o taxista explicou que ele mesmo era da Coopertáxi, mas que havia abandonado a cooperativa até pouco tempo atrás por conta de muita taxa pra pagar e pouca corrida pra fazer. Achei melhor sorrir e dizer que sim, só por precaução.

Coisa de quarenta minutos depois e eu estava em casa. É um troço super simples isso, chegar em casa, mas a coisa ganha um significado todo especial quando você passa as semanas viajando. Eu ficava o tempo todo me lembrando de que era segunda-feira e mal passava das 19h e que eu estava sentado no sofá da minha própria casa com meu cachorro e minha esposa prestes a chegar a qualquer momento - simplesmente porque me dar conta daquilo era MUITO bom.

Então um jantarzinho, alguma TV e depois, cama. E então entro em sonhos perturbadores onde estou no alto de uma montanha e de alguma forma percebendo alguma coisa esquisita subindo as encostas, lentamente e em espiral, e aquilo ia me incomodando cada vez mais até que às quatro da manhã eu acordo com a sempre desesperadora sensação de que se está prestes a vomitar.

Não vomitei, mas passei uma boa hora no banheiro espantado com a capacidade do meu subconsciente em bolar metáforas visuais para sensações corporais. E, obviamente, pensando em como diabos eu ia fazer para trabalhar no dia seguinte, já que aquilo estava com toda a cara de uma infecção alimentar.

Não consegui dormir muito mais depois daquilo e, às sete e vinte da madrugada o despertador tocou. Bethania já havia saído com o carro há mais de uma hora (O HORROR! O HORROR!) pra ir correr no Ibirapuera, então me vesti e fiquei esperando ela voltar. E pensando: "Bem, se ela não chegar até às 8h eu vou ter que ir de táxi".

Às 7:50 eu achei melhor me preparar e fui pegar minhas coisas. E notei que ela havia saído com as DUAS chaves de casa, a minha e a dela. Então estava eu, dormindo em pé, baqueado do estômago/intestino e tendo um paniquinho porque precisava descobrir um jeito de escapar da minha própria casa pra poder ir trabalhar. Mas felizmente não foi preciso: Bethania voltou às 7:55.

Ninguém deveria passar por tanto suspense àquela hora da manhã.

Mas pontualmente às 9:00 lá estava eu em modo "Prof. Primo", com o estômago revirando e caindo pelas tabelas de sono. Não sei como mas sobrevivi até a hora do almoço. Voltamos ao mesmo restaurante do dia anterior e foi então que tive uma revelação, ao ver algumas perninhas se movendo no meio do alface que estava em meu prato: "Bem, acho que já sei de onde peguei a minha infecção alimentar"...

molina A parte da tarde do curso foi particularmente difícil. Meu estômago não sabia se revirava ou se sentia fome, a turma já estava cansada e com sono, o conteúdo da parte final do curso é bem monótono e eu não sabia se me esforçava pra não dormir ou pra não deixar a turma dormir. Pra piorar, enquanto eu ajudava uma das alunas, notei que a cara dela era IGUALZINHA ao Alfred Molina – o Dr. Octopus, do filme do Homem-Aranha. E depois que eu penso nessas coisas, fudeu, o cérebro trava e eu não consigo me desligar daquilo, então eu tinha que ficar me segurando pra não começar a rir ou algo pior.

Mas no fim tudo deu certo. A moça do panetone até falou que aquele era o primeiro treinamento de Gerenciamento de Projetos que ela havia gostado. O resultado das avaliações também não me pareceu nada mau.

Em dias como este, a melhor hora do dia é quando eu entro no carro e percebo que tudo acabou. Pra completar eu me lembrei que aquela era a segunda ou terceira vez (em quase um ano e meio de São Paulo) que eu voltava do trabalho pra casa dirigindo meu próprio carro e ouvindo minhas próprias músicas. E então fiquei rindo sozinho, mesmo com a Av. Sumaré toda engarrafada na minha frente.

Sim, foram bons dois dias.