A rua Augusta e a fraternidade universal
Quando o sol se põe e a noite chega é como se Deus removesse do céu o seu olho gigante e incandescente e deixasse o mundo momentaneamente sem supervisão. E então é como se seus habitantes, que passam as horas claras do dia mantendo a compostura e cumprindo seus contratos sociais, percebessem que “o chefe saiu”.
Talvez isto justifique o que se vê à noite na Rua Augusta. Desde que me mudei pra São Paulo eu comecei a criar um fascínio cada vez maior por ela - mais especificamente pela “baixa Augusta” – a parte onde ficam os inferninhos, puteiros, botecos e casas noturnas.
Andar pela Augusta tarde da noite é surreal. De um lado do passeio tem uma mini-equipe de produção com câmeras e holofotes entrevistando as pessoas que passam. Mais adiante tem uma rodinha de violão, depois um grupo de moleques praticamente uniformizados com seus pretos e piercings na porta de uma boate. Há muitas câmeras, muitos celulares e muita gente gritando “onde você tá?” neles, para encontrar os amigos no meio daquele pandemônio. As paredes são cobertas de pichações e cartazes de artistas urbanos: um deles diz, em letras garrafais: “AMOR É IMPORTANTE, PORRA”. Os seguranças da porta das casas de shows adultos divulgam as atrações: “mulheres bonitas, quantidade e qualidade!”, diz um deles. “Todas apertadinhas”, diz outro. Mesmo se você estiver acompanhado, não tem problema. “Temos mesa pra casal”, dizem eles.
Ontem eu estava lá, com esposa e amigos, na porta do Inferno Club – uma casa de shows com um neon vermelho clássico na fachada, portas acolchoadas e reproduções de quadros de Hieronymus Bosch nas paredes. Um dos amigos que estava conosco não estava acostumado a “sair de balada” e estava visivelmente assustado. Então eu disse a ele alguma coisa mais ou menos assim:
- Não precisa se preocupar. Você olha pras pessoas e parece que elas vão te atacar e te matar, mas na verdade todo mundo está aqui com o mesmo objetivo: se divertir.
E é por isso que eu me sentia tranquilo no meio daquilo tudo. Todo mundo estava ali para, à sua maneira, exorcisar seus próprios demônios; fugir um pouco das vistas do olho incandescente de Deus e dar vazão aos desejos tortos que ficam engavetados de segunda à sexta. E por isso é como se todo mundo estivesse unido pelo desejo comum de se divertir.
A rua Augusta talvez seja um dos poucos lugares aonde o ser humano se comporte de maneira genuinamente fraternal.