Um santuário
“Confluence” é o nome do disco, Manual é o nome do autor. O tipo de música é aquilo que se convencionou chamar de “ambient” – uma sonoridade que não tenta reproduzir uma melodia ou uma história, e sim um lugar, uma atmosfera. O disco era indicação de Tiagón e eu cismei de dar uma olhada em como ele soava antes de ir dormir, dado que já passavam das duas da manhã.
O edredom é branco e tem ideogramas japoneses estampados por toda a sua extensão aveludada. Ele está estirado por cima do sofá, embrulhando Bethania da cintura para baixo. Da cintura pra cima ela abraça umas almofadas vermelhas que fazem as vezes de travesseiro improvisado. A outra metade do edredom está escorrendo do sofá até o chão formando uma cama improvisada onde Pavlov está enrolado daquele jeito padrão de cachorro dormir, enrolado em si mesmo.
O Itaim é um bairro paulistano bastante movimentado. São Paulo é uma cidade bastante movimentada. Mas a madrugada é o momento de letargia da metrópole e, com a exceção de um ou outro ônibus ou de algum motoqueiro mais barulhento, a madrugada, em seu silêncio, é imaculada. É a hora em que os milhões de outros paulistanos que engarrafam as ruas durante o dia simplesmente param de existir.
Pra mim o mundo têm corrido numa velocidade muito grande. Eu não sei se é o fato dos trinta anos de idade terem chegado, se é a carreira, o curriculum a conta bancária, mas nos últimos meses eu ando com uma sensação de urgência absurda, como se meu tempo estivesse se esgotando assustadoramente rápido por alguma razão. Eu fico pensando que meu tempo nesse mundo precisa ser bem aproveitado e começo a tentar preencher todos os instantes de todos os dias com alguma coisa, alguma ocupação, algum conteúdo útil; obviamente não consigo e, no fim, fico ainda mais ansioso do que estava antes. No fim-de-semana a coisa é ainda pior: eu entro numas de que são apenas dois dias que eu tenho para passar em casa, com a família, que eu preciso aproveitar São Paulo e suas opções legais de lazer/cultura/o escambau porque depois chega a segunda-feira e eu me enfio num táxi/avião/ônibus e vou pra algum buraco distante onde não tem nada pra ver ou fazer e a oportunidade vai ter passado; então, se o sábado e o domingo viram dias preguiçosos e sem muito o que fazer, o final do domingo – naturalmente deprimente pra muita gente – acaba ficando ainda mais torturante.
O disco de ambient se desenrola muuuuito lentamente e dura mais ou menos uma hora. Uma hora foi o tempo em que parei e fiquei olhando Bethania e Pavlov dormirem. São Paulo, respeitosamente calada, apenas observava pela janela. Nos últimos meses esta foi a primeira hora em que o tal senso de urgência, finalmente, deu uma trégua.
Pensando em como eu poderia definir esta uma hora, notei que a penúltima música do disco chama-se “Sanctuary”.
Sim, é isso. Um santuário.