Ontem eu saí da minha rotina noturna padrão (ficar na internet até dormir) e fui à um churrasco. Carne vai, cerveja vem, então alguém bota um CD do Zeca Pagodinho pra tocar. Acho que é o "Acústico MTV", o da capinha aí embaixo. Eu já tinha ouvido, incidentalmente (e acidentalmente), vários trechos do CD por aí, mas nunca havia sido exposto à coisa toda de cabo a rabo. E percebi, horrorizado, que o CD é feito de uma genialidade torpe, uma premeditação comercial assustadora e executada com uma perfeição que eu nunca havia visto antes.

20080925 A coisa começa nos arranjos. Na minha cabeça o pagode original era pra ser um ritmo informal, pra tocar batendo na mesa do boteco e chacoalhando a caixinha de fósforo, mas o CD do Zeca Pagodinho tem o oposto disso: arranjos orquestrados, cordas e flautas e o escambau numa produção impecável. Até aí tudo bem, isso é coisa que qualquer Emmerson Nogueira da vida faria, mas o problema é que no CD do Zeca Pagodinho os instrumentos não são tocados, e sim executados - pois há uma diferença entre "fazer música" e "reproduzir o que está numa partitura". O pagode do Sr. Pagodinho é milimetricamente quadrado, minuciosamente pasteurizado, e soa como um hambúrger do McDonalds. Mas isso tudo é parte do plano.

Outra coisa que me assustou foi o esmero dos músicos em cobrir expectativas. Se existem "clichês musicais", eles fizeram todos. Sem exceção. Não há absolutamente NADA de surpreendente, nada fora do usual. Pelo contrário: se existe um procedimento padrão para produzir pagode(*), eles seguiram tudo à risca. No lugar aonde a letra pede aquela frase solta cantada mais aguda, típica de pagode, ele ia lá e cantava. Quando o refrão dá um espaço para você pensar "putz, aqui é exatamente o lugar aonde deveria entrar aquele backing vocal cantando lá-laiá", pronto, lá estava o backing vocal cantando lá-laiá.

Isso, somado com a execução milimétrica dos instrumentos, gera um ambiente musical que, para meu horror, carregava uma semelhança absurda com a identidade sonora da Rede Globo. É sério, pense naquele som lavado e artificial do jingle de abertura de um Jornal Hoje ou de um Jornal da Globo. Temas musicais como esses tem que ser "não desafiantes", afinal o telespectador continua assistindo quando se sente confortável, e a música fácil ajuda a construir esse sentimento de conforto. E o CD do Zeca Pagodinho era planejado para ser exatamente assim, para entregar exatamente o que o ouvinte esperava ouvir, e portanto soar confortável e familiar.

Com as letras das músicas a palavra de ordem era a mesma: manter-se dentro do ordinário, não ser desafiante e investir no que se tornaria facilmente acessível e que, portanto, geraria facilmente uma identificação do ouvinte. Como neste verso:

Se eu quiser fumar eu fumo
Se eu quiser beber eu bebo
Pago tudo que eu consumo
Com o suor do meu emprego

Eu confesso um certo medo ao perceber o poder de um verso desses. De certa forma isso é manipulação em forma de música. 90% dos brasileiros que ouvem isso devem, instantaneamente (e instintivamente), sorrir no canto da boca e pensar: "porra, eu ralo mesmo, eu deveria ter o direito de tomar a minha cervejinha sem encheção de saco". E aí um Zeca Pagodinho virtual dá uns tapinhas no ombro dessa pessoa e diz: "Viu? Eu te entendo, cara!". E o elo se forma.

O reforço do elo vem com as outras letras, relatos de histórias fáceis da vida de todo o dia e de todo mundo. Elas não tinham NENHUMA poesia, NENHUM lirismo. O foco era pintar uma imagem mental fácil, um capítulo de novela em forma de música, então algumas eram relatos secos, factuais, quase jornalísticos de coisas como um penetra numa festa de aniversário.

Bebeu demais
Comeu de tudo
Dançou sozinho
Encheu o bolso de salgadinho
Foi pra fila da pipoca
Roubou o pedaço de bolo e o refrigerante
que estava na mão do aniversariante
Fez a criança chorar

E no churrasco meus colegas de trabalho cantavam junto e exclamavam entre si:

- Cara, esse CD é perfeito. É bom pra caralho.

Eles têm razão. O CD é, de fato, perfeito. Como produto, o disco de Zeca Pagodinho é uma das maiores obras-primas que a indústria da música brasileira já produziu.

(*) - Quanto pê, hein? Dá até uma sigla: PPPPP, ou P5, pra ficar muderrrrno.