Plantão Médico
Sábado, pouco depois da meia noite. Depois de levar Bethania em casa, botei um set do Armin Van Buuren pra tocar no carro e saí pela via expressa.
No ponto da foto abaixo faltavam uns 2km pra eu chegar em casa. Eu sou o pontinho verde. O pontinho azul é um Fiesta, e o pontinho preto é um motoqueiro, todos deslocando-se a uns 60km/h da direita para a esquerda da foto.

De repente, o Fiesta vira à esquerda (o que era proibido naquele trecho). O motoqueiro, pego de surpresa, bate violentamente na lateral do carro. A moto voa para um lado, o motoqueiro voa até a mureta e pára estirado, imóvel, no chão.
Às vezes eu acho que exagero um pouco no sangue frio. Num espaço de cinco segundos eu parei o carro, dei um pause na música, desci do carro, apertei o botão do alarme (para trancar o carro) e corri até o motoqueiro.
Enquanto eu atravessava a rua, a motorista do Fiesta descia do carro:
- Liga pro resgate agora!! - gritei.
Notei que a motorista do Fiesta estava toda de branco e tinha uma cruz bordada na manga do guarda-pó que estava usando. Parecia ser médica. "Graças a Deus", pensei.
O motoqueiro estava desmaiado mas não tinha nenhum ferimento evidente. Um taxista, que também parou para ajudar, me ajudou a retirar o capacete do motoqueiro (pra ele conseguir respirar). Aí a médica, motorista do Fiesta, aproximou-se.
E é nesse ponto que a tragédia realmente começa.
A doutora simplesmente parou em pé do nosso lado, disse "ai meu Deus", colocou as costas da mão no rosto do motoqueiro (pra ver se ele tava com febre?!???), e falou:
- Ai, deixa eu ligar pro SAMU aqui... qual é o telefone mesmo?
O motoqueiro começou a recobrar a consciência aos poucos. Ainda grogue, ele levantava a cabeça, olhava em volta, depois apagava de novo. Um dos curiosos que estava perto disse:
- Acho que ele está alcoolizado...
- É, deve estar - disse a médica. A médica!!!
Eu mal podia acreditar, mas ela era realmente médica. Pediatra, inclusive. O tempo todo que passamos com o motoqueiro, aguardando a ambulância, ela não fez absolutamente NADA além de dizer imbecilidades do tipo:
- Esses motoqueiros, eles aparecem do nada né, eu nem vi ele...
Ou então:
- Vou ligar pro meu filho vir aqui ajudar, nem sei como que eu faço com o seguro desse carro...
Eu tive a triste impressão de que meu conhecimento de medicina, adquirido via episódios de E.R. na TV a cabo, era maior que o dela. Eu já fui atendido por médicos ruins. Vários, por sinal. Mas nenhum era tão incapacitado quanto aquela mulher.
Algum tempo depois o motoqueiro estava 100% consciente, mas gemendo e reclamando de muita dor na perna direita. Mais tarde confirmamos que ele tinha quebrado o fêmur. A polícia chegou e a doutora foi falar com eles. Botei a cabeça do motoqueiro no meu colo e fiquei esperando a ambulância chegar.
Levou só quarenta minutos.

A moto e o Fiesta. Na direita, a polícia e o pessoal do SAMU está amontoado sobre o motoqueiro.
Nesse meio tempo a polícia mandava ver nos formulários de ocorrência. Eles também não pareciam saber o que estavam fazendo: riscaram de giz o local onde a moto e o carro pararam, mas não tiraram fotos ou registraram nada. Depois liberaram o trânsito, e os pneus dos carros que passavam apagaram as marcas de giz. Genial.
Pra piorar a minha birra com a doutora, eu ainda tive a impressão de que ela queria dar outra versão do acidente para os policiais, e só não fez isso porque sacou que eu não ia deixar.
Quando os paramédicos do SAMU chegaram eu fiquei esperançoso de que alguém com um mínimo de capacidade técnica iria ajudar. Talvez eu até precisasse falar como na tevê para ajudá-los: "Moto versus carro, a vítima tem 34 anos, sinais vitais normais mas ficou inconsciente logo após a batida, dor na perna direita"...
Minha esperança durou quinze segundos: os paramédicos tinham a cara mais fechada do mundo. Um escravo trabalharia com uma cara mais feliz que a deles. Apesar do tratamento meio bruto, o pobre do motoqueiro conservava a boa educação mesmo quando gemia enquanto eles imobilizavam a perna quebrada:
- AI AI AI devagar por gentileza! Ai!! Aaaai!!
Depois que botaram o motoqueiro na ambulância, deixei meus dados com a polícia (como testemunha), me certifiquei que os policiais sabiam da minha versão do acidente - praquela médica vagabunda não enrolar ninguém - e fui pra casa dormir.
Dormi meio frustrado de não ter entrado numa faculdade de medicina. Era a minha segunda opção de carreira, quando veio a época do vestibular. Mas na época eu achava o vestibular muito difícil e optei pela computação. Ao longo dos anos, todas as vezes em que eu fui mal atendido por um médico, a minha vontade de me tornar um deles aumentou. Porque eu faria um esforço enorme para me tornar um médico melhor do que todos os que já me atenderam um dia...