Nesta data querida
Já passou de meia-noite. Hoje é meu aniversário.
Ontem eu estava levando Bethania em casa, e ela chateada porque não conseguiu comprar um presente pra mim. Eu expliquei pra ela que eu não ligo pra datas, que se ela me desse algo no dia 31 ia ser a mesma coisa. E fui emendando:
- Não sei porque essa coisa com datas...
- Ora Zé, aniversário pô, é o momento da gente comemorar!
- Ah, mas precisa ser no dia do aniversário? Comemorar o quê...
- É aquela data pra se comemorar, ver que é feliz... olha você, tem um emprego legal, tem amigos, uma família que te adora... você tá bem de vida.
Depois que ela ficou em casa, eu me lembrei de um fato que aconteceu na última segunda-feira...
Saindo do serviço, fui pegar o carro. Ele estava estacionado longe do meu trabalho porque não tinha encontrado vaga de manhã. Deixei o carro num bairro rico, os quarteirões cheios de prédios imensos, com porteiro, fachadas de granito com nomes bestas em francês...
Descendo a rua e vendo os halls brilhosos de entrada dos edifícios, vi uma família de carroceiros na esquina. Desses que catam papelão. Eram o pai, jovem, imundo e cabeludo, a mãe, suja, sentada na calçada e, junto com ela, uma criança de no máximo 2 anos.
A criança chorou. Ela estava dentro de uma banheira de bebê, velha, vazia. O choro dela durou só uns 2 segundos, naquela cena que por 24 anos da minha vida foi comum de se ver. Mas, não sei por quê, eu senti dor. Dor como nunca senti, nem nos momentos mais excruciantes da minha vida. Joguei o notebook no porta-malas do carro enquanto via o pai se afastar pra catar papel, e a criança lá, sentada.
Aquela cena ficou insuportável.
Eu já havia visto aquela cena milhares de vezes: gente pobre. Tem por todos os lados. Mas eram catadores de papel, eram gente que trabalhava. Eu nunca havia me sentido tão mal quanto me senti vendo aquilo. Milhares de coisas passavam pela minha cabeça enquanto eu olhava para eles. A situação se resumiu a uma questão simples, eu tinha, eles não, e isso de repente era abominável e doloroso. Eu precisava fazer alguma coisa. Eu precisava muito fazer alguma coisa. Liguei o carro e dei a volta no quarteirão. Parei numa padaria.
"Pão e leite". Era a idéia fixa na minha cabeça. Entrei na padaria, chique e rica como o bairro. Eu mal conseguia olhar para os lados. Acho que sentia vergonha de fazer parte daquele mundo. Saí tão rápido quanto entrei, e voltei até a esquina. Só estava a mãe e a criança, ambos sentados na calçada.
Parei e fui até lá. A mãe olhou para mim. A partir daí os sentimentos já se misturavam todos, e comecei a falar meio que automaticamente:
- Ei, irmã... você tá precisando de um pão ou um leite?
- Ué, se você quiser me arrumar... - respondeu ela.
Me agachei e olhei mais de perto o menino, enquanto entregava o pão.
- Como ele se chama? - Perguntei
- É Ian...
- Ian... eu tenho um irmãozinho mais ou menos da mesma idade.
Olhei nos olhos do Ian e vi... acho que vi por que aquela cena, daquela vez me incomodou tanto. Dentro daqueles dois olhos que me olhavam de volta, intrigados, eu vi alguém tão cheio de possibilidades, tão complexo e tão vivo... e ao mesmo tempo tão acuado e enclausurado pelas circunstâncias... e vi o contraste das possibilidades dele com as minhas possibilidades, e senti vergonha do meu mundo, quando vi o mundo dele. Me levantei.
- Fica com Deus... tchau, Ian...
- Dá tchau pro moço, Ian - Dizia a mãe. Ele nem se mexeu e continuou olhando.
E entrei de volta no carro, com lágrimas nos olhos. No meio da tristeza e da vergonha, percebi que alguma coisa dentro de mim estava profundamente mudada.
Eu me senti verdadeiramente responsável pela dor de outra pessoa.
Quando eu acordar, vai ter a comemoração de sempre, o pessoal liga, deseja felicidades. As possibilidades que eu tive a graça de experimentar vão ser relembradas. As virtudes e conquistas vão ser relembradas.
Mas o que eu realmente quero de presente... Deus do céu, o que eu realmente quero são muitos anos de vida para poder dar alguma possibilidade a quem quase não tem nenhuma!!