Conto de Carnaval
Essa festa, que adoro, está chegando! Acabei escrevendo um contozinho sobre ela, aí vai:
--
Marcelo aperta o botão de desligar do seu computador. São seis horas da sexta-feira, véspera de carnaval. As passagens do ônibus são guardadas com cuidado na carteira, como se fossem passaportes da alegria, e Marcelo deixa o prédio com o andar altivo de quem caminha rumo à felicidade. Logo, o celular começa a tocar. São várias as ligações dos amigos, acertando os últimos detalhes da viagem.
Esse é o único período do ano em que Marcelo sente-se realmente livre e solto. O único período do ano onde a "ralação" diária é substituída por quatro dias de curtição total, sem nenhum limite. Afinal, "uma vez por ano é lícito enlouquecer", como todo mundo diz na época do carnaval. E, algumas horas depois, a loucura deliberada de Marcelo começa animada, na batucada de samba improvisado, no ônibus que corta a noite rumo ao lugar escolhido.
Após algum tempo de viagem, Marcelo já está acomodado com os amigos na casa alugada. E a diversão não pode esperar, todos já estão a caminho do trio elétrico. Do alto do morro era possível ver toda aquela gente uniformizada para a diversão, a música alta, as muitas mulheres e a alegria geral. "É hoje!", pensava Marcelo, enquanto ia penetrando a multidão.
A partir dali, tudo foi êxtase na maior festa do ano. Todo mundo estava enlouquecido com a música e a bebida. Os foliões mais desejosos também relaxavam a mente no lança-perfume, na maconha e outras maravilhas prazeirosas. A banda, sobre o trio elétrico, comandava a multidão: a cantora gritava "Beija, beija..." e num instante formavam-se casais que enrolavam as línguas umas nas outras e depois saíam como se nada tivesse acontecido.
Mas Marcelo queria mais. E nessa época as mentes sintonizam-se com extrema facilidade e, logo, ele e seus amigos se juntaram a um grupo de mulheres no mesmo idealismo. A festinha foi transferida para a casa dos amigos e, a partir dali, a muita bebida fez com que as lembranças fossem apenas um borrão na mente de Marcelo. Eram três da tarde quando ele acordou, deitado na sala da casa com uma das mulheres. Vários dos seus amigos em situação semelhante, escornados pela casa. Marcelo levantou-se, meio zonzo, pegou uma cerveja na geladeira e foi até a varanda.
- Êta festa boa... - Disse ele, depois de encher os pulmões daquele ar vespertino.
Mal sabia Marcelo que tinha tirado a sorte grande: as mulheres da última noite, simpatizando-se com os rapazes, deram a dica de um "esquema" para as outras noites. Uma festa fechada, só com "gente bonita" e "tudo liberado". Marcelo pensava consigo que aquele seria o melhor carnaval de todos os tempos. Mas nada podia prepará-lo para o que iria acontecer.
Naquela noite, ao chegar no lugar do "esquema", Marcelo mal podia acreditar no que via: mulheres maravilhosas, quase todas seminuas, "open bar" e segurança "amistosa", o que significava drogas à vontade. Marcelo e seus amigos se entreolharam como quem descobre um pote de ouro no fim do arco-íris. E correram para a multidão.
O resto do carnaval foi passado ali, naquele paraíso que tiveram a sorte de encontrar. Na quarta-feira, já viajando de volta, Marcelo deitava o olhar cansado na paisagem vista da janela do ônibus, e relembrava dos parcos momentos dos quais ainda tinha memória. Os amigos faziam a contagem das mulheres: os beijos estavam nas centenas e os "serviços completos", como diziam eles, não eram poucos. Marcelo foi apelidado de "mestre", por ter batido , de longe, todos os recordes da turma.
Marcelo sorriu. Foi o melhor carnaval de sua vida.
O problema é que sua vida não iria muito longe depois daquilo.
Alguns meses depois, uma pneumonia insistente levou Marcelo ao médico. O diagnóstico caiu como uma bomba: era AIDS. Em estado já avançado, provavelmente contraída "em outros carnavais". Quando o médico pediu a Marcelo que avisasse a todas as pessoas com as quais havia tido relações sexuais nos últimos dois anos, a consciência de Marcelo pesou: no meio das amnésias alcoólicas, ele mal sabia quantas haviam sido, nem sequer nomes ou telefones.
Marcelo se tornou, desavisadamente, portador da morte para dezenas de pessoas.
Ironicamente, na quarta-feira de cinzas do outro ano, o corpo de Marcelo era cremado no cemitério da cidade...