Faltavam poucos minutos para as nove da noite da quarta-feira quando entramos na pequena fila que se formava na porta da Opera House, em Toronto. As portas iriam se abrir pontualmente às nove para apresentações de Rob Hall, SND e, no fim, do Autechre.

Digo "entramos" porque acabei arrumando companhia para o show: Kay, uma colega de trabalho, me ouviu comentando que ia e quis vir comigo. Não adiantou alertá-la de que não se tratava de música "fácil", que ela iria ouvir alguma coisa parecida com um CD riscado a noite toda: ela não desanimou.

A tal Opera House é um velho teatro que acabou virando casa de shows. No palco, Rob Hall tocava alguns discos de um "electro-tech-house" bastante confortável. Devagarinho a casa foi se enchendo de um público bastante diversificado: tinha gente de bermuda, de terno, de uniforme de frentista de posto de gasolina, de vestido velho daqueles comprados em brechó, de roupa de marca, de camisa do Kraftwerk. Tinha gótico, tinha cult, tinha gay, mas a grande maioria era de nerds - feios, magrelos, branquelos, de óculos e com a cabeça meio raspada.

Acho que você vai rir, mas eu me sentia em casa. Já a Kay olhava em volta, sorridente: "Ah, eu gostei! Não é programa pra um sábado à noite mas eu gostei..."

Depois de algum tempo, Mat Steel e Mark Fell subiram discretamente no palco: era o SND que ia tocar. Os dois foram responsáveis pela parte mais "CD riscado" da noite: quando o ritmo parecia que iria tomar a forma de alguma coisa convencional, logo se desmanchava numa batida sem o menor sentido, que fazia um bonito contraste com os arpeggios sintetizados, às vezes delicados como um pianinho de brinquedo. A Kay, já não muito sorridente, arrumou um cantinho na beirada do palco e se sentou.

Rob Hall voltou para as pickups apenas para dar tempo de preparar o palco para o Autechre. Eu não fazia a mínima idéia de como eles iam tocar, então fui consultar o FAQ da banda e achei minha resposta no item 1.05:

1.05 - Como é o Autechre ao vivo?

Bem, ou eles fazem um DJ set, ou um mix set ou uma produção completa com sintetizadores. Eu vi o mix set, que é quando o Sean e o Rob tem cada um um laptop e um mixer customizado no meio deles. Usando minidiscs, eles se apresentam fazendo músicas customizadas a partir de loops que eles tem gravados, e/ou colocam músicas conhecidas (...). De qualquer um dos jeitos, Autechre ao vivo é algo pra se ver.

Quase todas as luzes se apagaram durante o show, e muita gente no público (incluindo eu) passou grande parte da apresentação de olhos fechados, balançando discretamente junto com a batida: era a melhor forma de "ver" o show. E o cara do FAQ tem razão, Autechre ao vivo é uma coisa de louco. Um dos caras passou o tempo todo debruçado sobre um sequencer, programando as duas horas de loucura rítmica, enquanto o outro recortava e colava texturas sonoras de tudo que é tipo, atrás de uma pilha de equipamento que eu não consegui reconhecer. O chato é não poder mostrar isso aqui: infelizmente não me deixaram entrar com a câmera.

Aí no meio do show eu olho pra Kay, toda encolhida na beirada do palco. Levei um susto e fui ver o que tinha acontecido:

- Kay! Tudo bem?!
- Hã... sim... eu tava dormindo...

No fim das contas os caras mandaram muito bem e eu me diverti como nunca. Outros detalhes:

Antes de entrar um cara meio lesado puxou conversa conosco na fila. Papo vai, papo vem, depois de ver que éramos brasileiros o cara me manda a fatídica pergunta:

- Pô legal... mas... no Brasil como é que é, é selva mesmo?

Ainda teve outras pérolas...

- Pô, aí, eu não sei os detalhes mas eu vi no jornal que cês tiveram um lance tipo uma guerra civil...
- Hmmm... acho que não foi no Brasil não, cara.
- Pô, sei lá, foi tipo um lance aí com o presidente...
- Não, esse aí é o Equador, não é o Brasil.
- Mas num teve um país aí que quebrou e tal?
- Não, essa aí é a Argentina...

O único problema que tive no show foi quando uns três caras ficaram na minha frente. Um deles tinha, juro por Deus, uma barba de pirata. E o que estava do meu lado dançava como um epilético. E estava com o desodorante vencido...

Claro que tinha muita gente usando drogas. A maioria ficava em frente às caixas de som, dançando descoordenadamente. Teve uma menina que ficou o tempo inteirinho imóvel, de boca aberta, olhando sem parar para o palco. E um outro cara que de repente apareceu pulando na nossa frente.

Quase no fim do show ele me cutucou e disse, risonho:

- Cara!! Você está QUASE DANÇANDO!!! Cuidado!